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domingo, 10 de novembro de 2013





O bacalhau com presunto e natas

Os Pirineus iam passando pela janela do trem, serpente de aço que avança à mais de 300kms por hora. As colinas vão dando lugar às altas montanhas e assim vai passando o tempo. As vezes torres medievais aparecem nas margens de rios cristalinos e as vinhas, onipresentes na região sudoeste, vão enfeitando a paisagem neste novembro outonal. As folhas com seus tons avermelhados dão um toque especial e compensa o céu cor de prata, coberto de nuvens que anunciam frio e mudanças invernais.

Assim como as vinhas, as cidades desfilam tambem: Toulouse, Carcassonne, Narbonne, Montpelier, Nimmes...até que na Part Dieu, em Lyon, o trem termina sua longa viagem. Estar com outros colegas, pastores e pastoras, é poder respirar, abrir o coração, contar piadas eclesiasticas e perceber que homens e mulheres da igreja, são gente, normais, alegres e sofridas. A miséria não polpa ninguem! O filho de um colega nasceu com uma doença incurável, um parente querido de outro se foi e a prima de outra, casada com pastor, está se divorciando.

De volta ao quarto na Maison Saint Joseph, eu pensei no quanto a pastoral de Lyon se parece com a reunião da qual voltei dois dias antes de pegar, de novo, a estrada, de ferro. Que seja na reunião em francês, ou naquela para pastores e missionários brasileiros em terras européias; em ambas as mesmas indagações alimentam a conversa.

Foi na semana passada, que saindo de casa, pegando a rodovia que passa atrás de nossa cidade, seguimos o caminho que muitos fazem à pé, e fomos não à Compostela, mas à Galicia espanhola. De lá, pegando a estrada montanhosa, seguimos para o norte de Portugal. Chegando na nação que tanto marcou nossa história, vendo passar pela janela cidades que são sobrenomes conhecidos de nossa gente, ficamos supresos pela beleza que, em vão, a fina cortina de chuva, tentava esconder. Interessante pensar que um país tão minusculo tenha influenciado tanto a historia das navegaçoes do planeta!

Tem viagens que formam a juventude, como se diz aqui na França. Viajar nos ajuda a ver culturas e povos com uma nova perspectiva. Para nossa familia, as viagens aqui pela Europa não somente ajudam a conhecer lugares históricos e belos deste continente que me adotou, mas principalmente para entender algo vital para nossas vidas missionárias: a alegria, as tristezas, os desafios de amigos que como a gente, labutam nesta terra as vezes tão ingrata e árida.

Porto, na época romana designava-se Cale ou Portus Cale, sendo a origem do nome de Portugal. Ali, entre os espinhos, mora um casal de amigos que aprendemos a conhecer. Naquela terra de vinhos excelentes, percebemos uma vez mais que somente quem vive em formigueiro pode entender o que é a vida dificil de uma formiga. Quem vê a vida que levamos aqui de longe, pode dar palpites e até se emocionar com relatos eloquentes, todavia, quem nunca navegou não sabe o que é ficar enjoado em alto mar. E que diga ainda o famoso portugues : «Navegar é preciso, viver é preciso ».

De Espinho, a estrada pegamos, passando por tantos lugares conhecidos e outros menos: Coimbra, cidade do saber, Fatima, cidade de apariçao, Condeixa da Claudia e assim vai seguindo o Portugal, assim a gente chega em Lisboa e encontra outros amigos, outros contatos daqui, dali, de longe, de perto, gente que conhecemos nos anos de peregrinaçoes missionárias por esse vasto mundo.

Gente do Reino Unido, da Espanha, do Brasil, do Estados Unidos... Da Italia os amigos beneditos, trazem sempre um sorriso, que sabemos as vezes escondem lagrimas quentes como um verão romano. Com gente assim nem precisamos falar muito, apenas um olhar e já percebemos muita coisa, pois temos experiências tão parecidas, e juntos já passamos pelos mesmos vales, pelas mesmas dores e ja escalamos as mesmas montanhas.

Os pastores vindo do Brasil proclamam verdades eternas, enquanto a gente se emociana. As vezes são gargalhadas; outras, lagrimas, pois mesmo quem tem fama de palhaço, com um pouco de sensibilidade pode fazer chorar tambem. As histórias de sofrimento, escasses e perseverança, são mais interessantes do que as que falam de números que a gente aqui nem consegue escrever, pois grandes demais para nossa realidade de domingos com 20 , 33 e as vezes, em tempos de festas, 50. Dificil para quem vive de Europa descretianizada pensar em Cinquenta e seis mil e la vai fumaça, numa unica igreja local!

Assim começa, mas tambem termina a conferência Fortalecer em Portugal e a gente pega a estrada de volta, parando em Vila Real na casa de gente boa e acolhedora que nunca tinhamos visto antes. Numa cidade que me fez pensar no Kiko e na Chiquinha, a gente passou à Espanha e enfrentou horas atravessando uma paisagem monótona que convida o motorista à uma boa e perigosa siesta atrás do volante.

Quando finalmente chegamos na verdejante, molhada e montanhosa região Basca, os olhos já não aguentavam ficar abertos e o coração se lembrava do bacalhau com bacon e natas que comemos com amigos num vilarejo do norte do Portugal. Alias, diante da imagem de herois de uma guerra ja conquistada, diante dos olhos de amigos preciosos, diante do bate papo saboroso, a gente até esquece o famoso prato lusitano. A amizade tem mais sabor, mais valor do qualquer culinária, qualquer passeio, qualquer viagem. A companhia de pessoas que sabem sorrir quando festejamos e chorar quando passamos pelo vale da sombra é tudo que queremos, tudo que precisamos.

O trem da pastoral chegou na estação em Bayonne às 0 horas e 39 minutos no dia 8 de novembro. Terminado os bacalhaus e a saborosa comida de Lyon, volto para casa, vendo a chuva cobrir a cidade, atravessando o rio caudaloso que corre ligeiro para o oceano. A vida não para quando a gente volta para casa, ela apenas começa, pois quando aterrimos , a realidade toma seu devido lugar e o sonho fica para trás nas conferências da vida.


Um por todos e todos por um !

sábado, 24 de agosto de 2013





A URINA DA VACA DE BAIONA




As Festas de Baiona trazem às ruas quase dois milhões de pessoas, todos vestidos de branco e vermelho. Um tipo de carnaval de Salvador com vacas nas ruas e muito alcool nas veias da juventude. Cinco dias para dançar, desfilar, brincar, correr atras de vacas, encher a cara de uma mistura de suco de laranja, vodka, uiske e tudo que se conheça como bebida alcoolica.
                         
As primeiras festas de Bayonne ocorreram em 1932 e os unicos anos sem festas foram os da segunda guerra mundial. As mesmas foram inspiradas pelas festas de Pamplona, capital da Navarra, do outro lado da fronteira, na Espanha. As festas de Pamplona figuram em terceiro lugar em popularidade, perdendo para o Carnaval do Rio de Janeiro e para o festival da cerveja de Munique.

Vacas nas ruas e touros na arena, assim vai a festa aqui nesta cidade às portas da Espanha. Cada touro que entra na arena, sai dali morto. Nenhum sobrevive. De uma forma ou de outra, a tradição pede que o touro morra. Um tipo de circo romano onde a fera luta contra o homem e sempre sai perdendo. Documentos encontrados na cidade, indicam que em 1289 já haviam touradas na cidade. Gente importante como o rei Philippe V d'Espagne, Napoléon III e Eugénie de Montijo, Mérimée, Gustave Doré, Montherlant, Hemingway e Picasso, já assistiram uma tourada em Baiona.

Enquanto os touros agonizam dentro da arena, na cidade os restaurantes esperam a carne sacrificada à ansia sanguinaria do ser humano. Na noite da matança, o povo comerá carne de touro da arena, por certo acompanhada de um bom vinho da Aquitania, nossa região.

Na avenida 11 de Novembre 1918, durante as Festas, milhares de pessoas dançam o fandango, dança tipica da região basca ao som de grupos folclóricos locais. Enquanto isso, na estreita e medieval rua do Temple, eu e um musico do Brasil, evangélico e professor de ritmos brasileiros aqui na França, cantávamos musicas da harpa cristã e outras de nossa infância bleiana, em ritmo de bossa nova.

Aquela foi a pela primeira vez na historia das igrejas protestantes/evangélicas da região, que foi organizado, no centenário edifício da igreja Lutero-reformada, o bar do reverendo (sem álcool). Como na vida as vezes nada se cria e tudo se copia, decidimos organizar o bar protestante como os católicos organizam o bar do padre durante as Festas de Bayonne.

Alem de bossa nova à tarde e à noite toda, os visitantes cansados de vacas, álcool e fandango, podiam descansar no nosso bar, beber agua; ou suco e saborear um amendoim especialmente preparado para as festas.

O Cedric chegou no inicio da noite naquela sexta-feira e ficou até que o bar fechasse. Alguns dias depois, quando o convidamos para jantar em nossa casa no bairro de Marracq, ele nos contou um pouco mais de sua historia.

“Ha alguns anos atrás eu morei numa outra cidade. Um dia estava numa academia, tentando perder uns quilos quando um rapaz veio conversar comigo. Ele foi direto ao assunto: ‘Voce conhece Deus? Sabe para onde vai quando morrer?' O que mais me deixou surpreso, foi o fato do rapaz ter abordado questões que naquele momento me deixavam sem sono. Como se alguem tivesse contado para o rapaz o que eu trazia no meu coração. Tudo que aquele individuo me falou naquele dia na academia, trouxe ao meu coração um profundo desejo de conhecer mais sobre Deu e sobre a mensagem de Jesus. Depois de um tempo eu me mudei para Bayonne e desde então tenho procurado alguem que me fale de Deus. Naquela sexta-feira, na Festa no final de julho, eu estava meio perdido. Tendo deixado alguns colegas; com quem eu havia bebido um pouco, eu me perdi nas ruas estreitas do centro. Foi ai que eu vi a grande faixa vermelha e branca do bar do pastor.”

Na segunda feira, depois da Festa, a prefeitura manda lavar, literalmente, as ruas da cidade que já foi morada de romanos e tantos outros povos antes e depois. As pedras milenares ficam manchadas e não somente de urina e excrementos de vaca. Quando vou ao centro da cidade depois da Festa, vendo os funcionários lavando as ruas, não posso deixar de pensar que existem manchas que somente o precioso sangue do Cordeiro de Deus é capaz de lavar.

No mesmo dia em que fiquei conhecendo o Cedric, em meio a urina das vacas de Baiona, descobri que eramos vizinhos. Mundo pequeno e um Deus imenso e cheio de graça!


Damaceno Junior



quarta-feira, 26 de junho de 2013






"Comigo, ninguém tem paciência!”.


Escrevo mais como passatempo do que para ser lido pelo mundo brasileiro afora. Quem ainda lê hoje em dia? Alem das citações, das reclamações, das bobeiras postadas no facebook, ninguém lê coisa alguma nestes dias de revoluções e apostasias. Imagino que alguns cristãos leem a Bíblia, ainda, antes da oração matinal, antes do começo do dia, antes do trem, do metrô, da caminhada, da bicicleta...antes que a vida comece. Todavia certas tradições são importantes, por isso esta cronica se fez necessária, para os amigos, pelo menos.

Ano pobre em cronica, porem rico em águas. Muitas águas rolaram na vida aqui na região basca francesa, literalmente. A primavera chegou e se foi e a cronica não veio. Faltou criatividade durante os longos meses de dilúvios e enxurradas sem fim. Nos altos Pirineus, casas foram arrastadas para dentro dos rios, o santuário de Lurdes ficou de baixo d'água e os turistas voltaram para onde vieram, pois o astro rei nos abandonou este ano e a praia ficou da cor de rio sujo e foi interditada. A primavera foi invernal e o verão está mais com cara de outono do que de estação propicia à praia. Nas montanhas, a neve continua cobrindo os altos picos, mesmo em pleno verão. Coisa rara em final de mês de junho, nestas latitudes franco-espanholas. São os finais dos tempos!

Depois do inverno, uma viagem ao Brasil, marcou uma parte importante da vida. Pude compartilhar, fazer e dirigir teatro, comer churrasco e tomar chimarrão, rir, chorar... Rever a família depois da perda de minha querida mãe, foi muito importante, mas o silencio ao entrar na casa onde ela morou e eu cresci, foi horrível e indescritível. Mesmo em cronicas a gente não consegue escrever a dor do vazio, da falta que uma pessoa tão querida como uma mãe faz em nossa vida.

A viagem foi: seis aviões, as igrejas, as palestras; o corre-corre no sul, em Brasília, Goiânia, as pamonhas, BH, os restaurantes mineiros, Juiz de Fora com amigos que conheci em Bethune, Cabo Frio e a festa para comemorar os 50 anos. O bolo foi feito no Rio e tinha a cara do Chaves, literalmente. Não podia ser outro bolo e tinha que ter sido feito no Rio. Isso, isso, isso, pois para um pastor que canta musica barroca (com voz de castrado), faz teatro e mora no sul da França, somente um bolo com a cara do Chaves poderia servir para uma comemoração tão importante. 'Comigo, ninguém tem paciência!'

Antes do aeroporto, uma parada no aniversario da Volantes em Serô onde estudei na década de 80. Isso somente entenderá quem foi volantes, os outros vão passar para o próximo paragrafo, ou parar por aqui. Cronica chata!

Assim que voltei para a França, fiz um batismo numa praia em Biarritz, me mudei para outro bairro de Bayonne, participei de conferencias pastorais regional e nacional, fiz um enterro de uma senhora de 100 anos e falei num encontro da ABU sudoeste. Neste encontro da Aliança bíblica universitária, nas minhas palestras, tive tradutora. Não porque tenha falado em português. Nada disso, falei em francês mesmo, todavia tudo foi traduzido para o chines. Que outra língua esperavam que fosse? Mesmo nos confins do sudoeste da França, grande parte dos participantes nos congressos para estudantes cristãos, é composta de jovens do gigante asiático. A igreja chinesa está enviando missionários para evangelizar estudantes chineses nas universidades do Hexágono. Interessante!

Voltando do Brasil pensei na realidade dos anos que passam, pois como todo mundo, estou ficando mais maduro, com mais cabelos brancos. Tudo isso longe do chão que me viu nascer, longe do lugar de minha infância, longe do aconchego da pátria amada. Porem, cada vez que assim penso, chego sempre à mesma conclusão que, mesmo em tempos de grandes indagações e crises, o melhor lugar do mundo é onde Deus me colocou. Nem as mangas do Brasil, nem os amigos que amo tanto, nem a oportunidade de direcionar teatro para 50 pessoas, nem as praias maravilhosas do Cabo Frio, nem mesmo o pequi de Goiânia, pode trazer mais alegria ao meu coração do que a certeza de estar no lugar onde Deus me plantou.

Alguns afirmariam: se morasse no sul da França diria o mesmo. Verdade, ajuda, viver num lugar tão lindo, todavia não me esqueço daquela historia das cinzas no paraíso. Nem tudo aqui são flores e mesmo o violento e maravilhoso golfo de Gasconha, a gastronomia famosa, as lindas montanhas, nada poderia fazer com que permanecêssemos aqui, somente a graça divina o faz. Nossas mãos estão num arado que ara num mundo invisível. Nosso trabalho está mais para campo de batalha do que para pique-nique à beira mar, pois labutamos não apenas na terra que pisam nossos pés, mas numa realidade que somente é visível aos olhos do espirito. Ainda bem que nos lugares celestiais, Deus tem paciência comigo.