Páginas

sábado, 22 de dezembro de 2012




O fim do mundo.


O dia amanheceu com ares de fim de mundo. Um vendaval soprando atlântico afora, derrubando galhos de arvores, atravessando os campos e vilarejos da região basca, se esbarrando contra o paredão rochoso chamado de Pirineus. Aquele muro que separa a França da Espanha. Pegando a rodovia de Toulouse, as 9:12 da manhã, seguindo as montanhas, fui visitar 'monsieur' Martin.

Foi ao chegar no apartamento do dito senhor, que pensei: 'isso dá matéria para um cronica, porem tão incrível que os fies e os infiéis leitores vão pensar que, precisando de uma cronica para marcar o fim do mundo, eu inventei a historia'. Por incrível que pareça, é tudo verídico, tirando os blá blá blas de sempre, claro.

Vimos o senhor Martin na semana passada. Ele apareceu no culto da manhã e me perguntou se podia visita-lo durante a semana. Quando me disse onde morava, eu não exitei. Mesmo que seja o dia do fim do mundo, não tenho como não ir. Vou poder contemplar a beleza das montanhas de novo!

Mesmo as nuvens negras vindas do oceano, não conseguiram esconder a beleza da cadeia montanhosa que nasce no mediterrano e se joga, literalmente, dentro do oceano. La estavam os picos colossais, cobertos de neve, lindos como sempre. Não pude ignorar que o rio que atravessei, tinha aquela cor tipica de rios que descem das altas montanhas, águas cristalinas, azuladas....

Tanta beleza, porem não consegue esconder os traumas, os sofrimentos, as lagrimas que inundam a vida das pessoas, como a daquele senhor. As vezes a gente esquece que por mais belo que seja a paisagem, ela não impede que a morte reine, que as trevas cubram a vida dos seres humanos que povoam este planeta que para muitos acabou já faz tempo.

Separação, distancia dos filhos, apartamento vazio, desemprego, uma televisão, um colchão no chão, duas bisnagas francesas e um cachorro. Tudo o que sobrou, o que ficou, o que ainda não se foi. Sentei no chão e fiquei ouvindo a historia triste daquele homem que estava perdendo o que o ser humano tem de mais precioso, sua dignidade.

Ao lado do colchão um tesouro. Posta ali no chão frio, preta, como tantas outras, um livro. O famoso livro! O livro, que é pagina escrita, conteúdo revelado , poderoso, divino, voz de Deus falando, mesmo no deserto de um coração conturbado e sofrido. Aquele homem estava lendo o Evangelho segundo Mateus.

“Meu primeiro encontro com um cristão protestante aconteceu tem uns quatro anos. Estava viajando pelo país, passando por uma estrada perigosa, num momento de inatenção, perdi o controle do carro e cai numa vala e não pude sair. Carros passaram, se foram, ninguém quis ajudar. Quando já começava a desesperar, um carro parou e dele saiu um casal. Não conseguimos tirar o carro da vala. Fiquei surpreso quando o casal se prontificou de me levar à minha cidade, longe dali. Me deixaram em casa, anotaram o telefone num pedaço de papel e se foram. Na confusão, perdi o telefone, mas uns tempos depois minha esposa encontrou o pedaço de papel e entramos em contato com o casal que me ajudou a sair do buraco. Daquela vez eu soube que eles eram cristãos. Foi a primeira vez que ouvi alguém falar do Evangelho de Deus.'

Fiquei olhando para aquele homem que mal conhecia e fiquei pensando como Deus age, como não abandona o homem, mesmo que este tenha decidido de passar pelas estradas perigosas da vida. Como ele as vezes faz com que um carro saia da estrada, caia numa vala numa estrada deserta longe de cidade e vilarejo, no meio das montanhas sublimes!

“Como o senhor ficou conhecendo nossa igreja?' Eu quis saber. 'Eu vim morar nesta região à procura de emprego. Mulher, mala, cuia (cuia europeia, claro), crianças e vontade de mudar de vida. Um dia passando pela estrada costeira, eu vi, em frente de uma casa um carro à venda. Parei e perguntei sobre preço e tudo mais e no final eu ganhei uma Bíblia e um convite para ir a igreja.”

Voltando para casa, eu me lembrei que a pessoa da igreja que estava vendendo o carro morava na estrada que pegamos todos as quintas para estudar a Bíblia em Saint Jean de Luz. A casa fica realmente à beira da estrada. Exatamente no lugar de onde se vê as montanhas e o oceano. Minha vista predileta da região.

E até agora nada do mundo se acabar, quem sabe em 2013. Se terminar em 14, a copa do mundo brasileira... Enquanto não termina, vamos lutando, batalhando, levando aos corações as Boas Novas vindas da Eternidade.

Um por todos e todos por um.



domingo, 25 de novembro de 2012




A grelha de São Lourenço





O trem subia, feito serpente de ferro, as montanhas do país Basco espanhol. No inicio da viagem, as paradas anunciadas em espanhol, basco e inglês, era folclórico e interessante. Seis horas depois, os anúncios tri-lingues enchiam a paciência dos passageiros e nosso maior desejo era que o bendito trem chegasse em Madri. Eu estava indo ao congresso Fortalecer. Outros tantos brasileiros vindos de vários países da região, também compareceram. Naquele dia ensolarado de novembro, assim que o culto acabou em Biarritz, corri à estacão e peguei um trem que chegava de Paris, atravessei a fronteira e peguei o famoso trem poliglota em Irun.
Primeira vez em Madri. Amei o céu azul e a limpeza das ruas da capital espanhola. De Madri se vê as montanhas onde a conferencia aconteceu. Um outro trem e a gente chega aos pés dos montes, sobe uma rua por onde passaram homens e mulheres dos mais poderosos que a Europa conheceu e chega na Casa San Jose.

Fortalecer é aquele tipo de encontro, ao qual todo missionário, longe de casa, sonha participar. A gente, que vive do outro lado do mundo em países onde uma igreja de 100 pessoas já é quase um mega church e em 10 anos de pastorado se batiza sete pessoas. Aquele tipo de encontro que, ou te deixa com complexos de inferioridade e deprimido, ou trás alento novo ao seu coração. Você diz consigo mesmo: 'Se Deus pode utilizar os mineiros, paulistas, cariocas, o pastor tal, a igreja tal, nesta e naquela circunstancia, ele por certo fará algo tremendo aqui na França, Itália, Portugal, Espanha... Contextos, culturas e línguas diferentes, mas o mesmo Deus'.

O louvor devorando nossos corações, consumindo o silencio de anos cantando com apenas quarenta pessoas. Estar com tanta gente do país amado e que, como a gente, saiu de casa para anunciar as Boas Novas em terras europeias, consola tanto! Ficávamos sem saber se riamos ou chorávamos. A maioria das vezes, ambos.

A animação é grande. Os preletores vem daquelas igrejas que são tão grandes que aos olhos franceses, espanhóis, portugueses, italianos, parece grande demais para ser verdade. Um dos responsáveis dá as boas vindas aos missionários e pastores vindos de vários países da Europa; vindos dos USA e de outros lugares que por motivos de segurança, não serão citados nesta cronica.
As apresentações continuam. O momento tão esperado chega finalmente. Os preletores se levantam e vão à frente. A gente fica meio decepcionado, tal o profeta Samuel diante da simplicidade do pastor de ovelhas que ele ungiria rei de Israel. Eu imaginava o pastor tal bem maior, menos gordo e mais bonito também.

Pastores super ocupados, dois quais, alguns eu nem imaginava que um dia apertariam minha mão. Um deles até me perguntou se não me havia visto em algum lugar. Eu fiquei contente, era de se esperar, mas por certo que um homem que prega todos os domingos para milhares de pessoas, não saberia quem era o franco-brasileiro, menos conhecido do circuito evangélico, que segundo certas estatísticas, passam dos 40 milhões.

Para meus irmãos franceses é quase que querer comparar nosso planeta com a galaxia onde moramos. São números que não se pode entender aqui.

E lá estavam os pastores famosos e cheios de compromissos, que atravessaram o oceano para falar para um gato pingado de missionários e pastores. Quem se importa em falar para gente como nós, que não damos ibope algum! Alguém já ouviu falar da igreja evangélica francesa, espanhola, italiana, portuguesa, etc... que tem 30, 40, 50, 10, membros que não publica revista alguma, que não grava cd algum de louvor, que quando batiza uma única alma, já faz festa? Mas por incrível que pareça, os homens famosos vieram, falaram, encorajaram e fizeram a gente chorar.

Números não impressionam a Deus, creio. Alias nada deve impressionar o Senhor do Universo. Se um dia for possível que ele se surpreenda, imagino que vai ser com a simplicidade do seu povo, com o coração simples que se importa, que chora e que abraça o missionário sem nome. Deus se alegra com a alma singela, acostumada a orar por milhares de uma só vez e que ao orar por você diz: 'Senhor abençoe o Damaceno...eu profetizo que a obra do Senhor na França não morrerá, mas prosperara....'

Saindo da Casa San Jose, virando à direita, subindo a ladeira, a gente chegava aos pés de um dos maiores monumentos do país, O El Escorial. Um monumento complexo, construído pelo rei Filipe II da Espanha no final do seculo XVI, em comemoração da vitoria na Batalha de Saint Quentin em 10 de agosto de 1557 sobre as tropas de Henrique II, rei da França; e para servir de lugar de enterro dos restos mortais de seus pais, o Imperador Carlos I e Isabel de Portugal, assim que seus próprios e dos seus sucessores. O El Escorial é também um santuário erigido à gloria da contra-reforma. Ali dentro estão guardadas uma das maiores coleções de relíquias do mundo católico. Cerca de 7 500 relíquias são guardadas no famoso monumento.

A planta do edifício, com as suas torres, recorda a forma de uma grelha, pelo que tradicionalmente se diz que se fez assim em honra à São Lourenço martirizado em Roma no suplicio da grelha.

As cinzas de Charles Quint, pai do construtor do El Escorial e famoso rei espanhol, nascido em Gand, na Bélgica e que reinou sobre os Países Baixos (norte da França, Bélgica e Holanda), foram transferidas e colocadas na catedral dentro do famoso monumento, ao lado de seu filho Filipe II. O mesmo Charles que combateu os protestantes no inicio da Reforma e foi Imperador do Santo Império Romano Germânico. Considerado o príncipe mais poderoso do seculo XVI. Um homem que viveu apenas 58 anos, mas teve grande influencia na historia da Europa e das Américas.

Olhando o impressionante monumento funerário a gente fica pensando como um homem tão poderoso se resume hoje, a um amontoado de poeira! De belo somente o mármore que cobre a poeira fúnebre que ninguém ousaria expor. Um homem temido por tantos, grande conquistador, defensor da santa fé romana, reduzido à poeira histórica.

Voltando da conferencia, fiquei pensando que no final das contas, poderoso mesmo, só aquele que vive e reina pelos seculos dos seculos diante de quem todos nós, crentes, pastores, missionários, mercenários, reis, presidentes, poderosos, gentalha em geral, um dia compareceremos.

Um por todos e todos por um.








sábado, 10 de novembro de 2012



A lata de azeite de cinco litros








Do alto da colina em Bidart, se tem uma das mais belas vistas da Costa Basca. As vezes a gente torce para que o semáforo fique vermelho para que possamos ficar mais tempo observando a grandeza da natureza; contemplando a beleza sem igual que, graciosamente, nos é oferecida. Do lado direito, o atlântico azulado, com suas ondas gigantes e do outro os Pirineus cujos picos mais altos começam a branquejar. As montanhas mais próximas geralmente são azuis como o mar que faz da Costa Basca uma região surfista de renome internacional. Quem nunca ouviu da boca dos orgulhosos moradores da região: 'Moramos numa região onde se pode esquiar pela manhã e surfar à tarde.'

Ontem fomos a Espanha, passando pela estrada de Bidart. Ao parar no mesmo semáforo, perto do cemitério da cidade, eu vi, pela primeira vez, desde que viemos morar na região, que a neve havia chegado nos picos mais elevados da impressionante cadeia montanhosa. Aproveitando as férias de Todos os Santos (os santos não estão de férias, mas as crianças sim), estávamos indo à Espanha com as meninas. O céu azul, as montanhas azuis e o mar também, já bastam para sairmos por ai de carro, sem pressa, apenas observando tudo isso; deixando a alma se saciar de beleza e tranquilidade. Espanha por aqui rima com gasolina barata, cigarro barato e tantas outras coisas mais baratas, como a lata de azeite de 5 litros que, por incrível que pareca, custa apenas 15 Euros.

Alem de passear e ver o mar do outro lado da fronteira, a gente para no famoso Al Campo, o supermercado que na França se chama Au Champ e que em português se chamaria Ao Campo. Ali, no famoso supermercado nascido no norte da França, se compra caquis e mangas da Espanha, feijão preto do tipo brasileiro e outras coisas que aqui na França custam o olho da cara. Uma vez pelo menos a gente compra os 5 litros de azeite, pois vale a pena pois é tão mais barato! A gente volta para casa com a aquela ideia quase boba e pueril de que esteve em outro país, mesmo que tenha viajado apenas 30 minutos no carro.

Hoje voltamos à estrada N10 passando por Birdart. Como toda quinta, eu e minha esposa passamos por lá, indo estudar Tiago com um pequeno grupo na maravilhosa cidade de Saint Jean de Luz. Depois da reunião, afim de matar dos coelhos com uma cajadada só, íamos orar com a 'Madame e o Monsieur' du Catô Marquê. Senhor Marquê vem sofrendo de câncer tem mais de 3 anos. Semana passada eu fui orar com eles, juntamente com um outro senhor da igreja de Biarritz. Eu não conhecia o senhor Marquê, apenas havia encontrado sua esposa na igreja há duas semanas. Desesperada a senhora buscava ajuda, buscava conforto na oração.

As 13h30 passamos pela clinica onde o senhor estava internado. Da N10 se vê a clinica, mas geralmente as pessoas preferem olhar para o mar, do outro lado da estrada, ou para as montanhas que parecem surgir imponentes, colossais, de onde a cidade termina. Assim que a reunião terminasse, voltaríamos àquela clinica para orar.

14H30, o estudo avançava consideravelmente. De Tiago fomos à João e Romanos (o tema de hoje foi sobre as tribulações da vida). O telefone tocou varias vezes. Eu havia, de novo, esquecido de desligar meu celular. Como o mesmo não parava de tocar, decidi atender. Era a voz de madame Marquê, tremula, chorando, que me anunciava que seu esposo havia falecido às 13h00. Não consegui terminar o estudo direito. Me enrolei nos textos, fiquei meio paralisado. Portanto hoje não foi a primeira vez que tive que ir orar por uma família e ver um corpo informe, frio e pálido ainda na cama do hospital. Mas acontecimentos deste tipo sempre trás à tona realidades dolorosas de nossa própria historia.

Saímos às pressas da casa de nossa amiga e fomos orar com a senhora Marquê, que nos esperava ao lado do corpo de seu defunto marido. Um outro casal estava no quarto. Os amigos do defunto, cabisbaixos, tristes, esperando que os homens da funerária chegassem para levar o corpo do falecido.
'Como aguentar uma coisa tão dorida como esta! Monsieur du Marquê, era uma pessoa tão cheia de vida, que gostava de festa, gostava de dançar...' Disse a amiga.

Tudo muito recente, apenas uma hora e meia que o outrora senhor Marquê, havia cessado de respirar. Cheiro de morte é uma abominação com a qual ninguém se acostuma. Abri minha Bíblia e li o salmo 23, texto predileto de minha falecida mãe. Li, orei e cantei o mesmo salmo. Aproveitei e falei de como minha mãe gostava daquele texto e como Deus a havia levado para si em julho. 'A graça me sustentou. Somente a graça e fé em Deus pode nos consolar em momentos de perda como este', disse.

A senhora que, juntamente com o marido, viera chorar a perda do senhor du Marquê, me disse: 'Pastor talvez seja por isso que eu sofro tanto. Eu não creio em nada. Não tenho fé. Há 40 anos atras, eu e meu marido morávamos na Africa e minha querida mãe e um irmão, morreram num acidente de carro aqui na França. Na época não podíamos viajar com facilidade, então eu não pude vir para o enterro de minha mãe e de irmão. Até hoje eu sofro e fico pensando que meus queridos não morreram, mas continuam perdidos por ai...'

No momento da oração, quem mais chorou naquele quarto de hospital, não foi a senhora que acabara de perder seu marido, mas a outra que todos esses anos vive um luto que nunca tem fim. Uma esperança de vida, onde só existe morte e duvidas. Ao ver as lagrimas da senhora eu disse simplesmente: 'Seja abençoada minha senhora. Que a Paz de Deus seja com a senhora.' Ela olhou nos meus olhos, os dela cheios de lagrimas e disse: 'Obrigada pastor!'



Um por todos e todos por um.
























terça-feira, 23 de outubro de 2012


As castanhas de Itxassou.




Os vales suaves e as primeiras montanhas da impressionante cadeia dos Pirineus, aparecia do outro lado da janela, cada vez que abríamos as cortinas de nosso quarto no albergue onde estávamos participando do final de semana da igreja de Biarritz. Linda paisagem! Nosso primeiro encontro deste ano, foi um tempo para conhecermos melhor os membros da igreja onde começamos nosso segundo pastorado aqui neste país. Este ano o preletor foi o pastor Junior Damaceno, o novo e primeiro pastor de uma igreja que tem 10 anos.

Nossa identidade em Cristo foi o tema que escolhi. Um estudo baseado nos versículos 3 a 14 do capitulo primeiro desta maravilhosa epístola paulina. Do lado de fora, os dias outonais ainda se pareciam com os do fim do verão. E as montanhas mudavam de cor, sem muita pressa. Enquanto em outras regiões as arvores já estão vermelhas, aqui elas começam apenas a amarelar. A neve chegará quando novembro estiver findando. No vale profundo corre um rio, o mesmo que atravessa a cidade onde moramos, 25 minutos mais longe, de carro, claro.

Naqueles dias de tranquilidade e comunhão, pensei nas ultimas semanas e nas coisas incríveis que vivemos aqui na região basca francesa desde que chegamos em julho. Três semanas atrás estava indo para uma reunião de estudos bíblicos sábado pela manhã. Chuva caindo, eu parado, esperando o sinal abrir, um pensamento atravessa minha mente: 'O casal onde o estudo bíblico será realizado, vai te falar de um carro.' Pensamento materialista, nada espiritual, pensei. Nada de almas que serão resgatadas das trevas, de bençãos dos céus derramadas sobre a igreja de Biarritz, não, apenas um carro. E por falar em carro, o segundo carro que jamais possui já devia ter morrido, se as predições de nosso garagista do norte da França tivessem se tornado realidade. A ultima do nosso ex-garagista, português de origem, foi: 'Eu conheço Biarritz, fica na estrada que todos os anos pego para ir visitar a família em Portugal. Longe demais. O carro de vocês não vai resistir uma tão longa viagem.'

O corro sobreviveu até agora, mas naquela manhã, quando a reunião de estudo bíblico terminou a senhora me chamou num canto da sala e me disse: 'Temos um filho que mora em Paris que está vendendo o carro...O veiculo está em ótimo estado. O preço é muito bom e pensamos logo em vocês.' Por incrível que pareca, eu havia esquecido o pensamento que atravessara minha mente duas horas antes. O carro cinza, não é o único que envelheceu. Quando cheguei em casa, eu me lembrei do dito pensamento que atravessara minha mente, quando havia parado no semáforo perto da igreja de Saint Martin em Biarritz. Corri para o computador e abri o email que o filho da senhora havia enviado, depois de ter recebido um telefonema da mãe dele. Lá estava o carro verde, da mesma cor do meu primeiro carro, aquele que perdi num acidente na Inglaterra. Aquele acidente em outubro de 2003 que quase me promoveu às mansões celestiais.

Não sabíamos de onde o dinheiro sairia, vida missionaria tem dessas coisas. A maior surpresa, foi quando demos uma olhada na conta, onde depois de muitos anos depositamos 50 euros por mês, que descobrimos que o dinheiro para comprar o carro de Paris estava lá, guardado, esperando por aquele veiculo verde, da cor dos campos da Região Basca. Agora podemos parar de orar que o carro não quebre enquanto percorremos as estradas, indo e vindo, ensinando nos vilarejos, nas cidades..enquanto proclamamos a Vida Eterna em terras bascas.

Um bilhete e seis horas percorrendo a França de trem bala e eu cheguei em Paris. O mais lindo de tudo isso, não foi entrar no carro e percorrer as ruas da capital, seguindo o rio sena, correndo na direção de Notre Dame, de la Place de la Concorde, mas foi a grande 'Jesuscidência', pois na mesma semana em que o dono do carro me disse que o mesmo estaria disponível, duas famílias de amigos brasileiros, estavam passeando na capital francesa. Que alegria, chegar na estação de trem em Montparnasse e encontrar os amigos gaudérios!

Melhor do que comprar um carro que ainda tem muitos anos pela frente, um carro verde, um carro francês, foi poder rever amigos preciosos, dos quais, alguns, já não via ha muitos anos. Preciosos amigos! Nenhum bem neste mundo pode ser mais precioso do que a comunhão com Deus e com as pessoas que amamos. Com uma família de amigos de longos carnavais, pascoas, natais, tudo quanto é festa, atravessei a Cidade Luz no novo carro, os outros amigos da capital brasileira, eu encontrei no dia seguinte no centro financeiro 'de la France': la Defense. Uma hora apenas! Tempo para abraços, beijos, risos e troca de presentes. Uma lembrança da região basca para elas e para mim, uma caixa de paçocas e um tubo de plastico cheio de pés-de-moleques do Brasil.

Apenas dois dias antes de Paris, em Itxassou, o povo da igreja de Biarritz colheu muitas castanhas nas estradas perto do albergue onde ficamos. Aquela linda estrada, que atravessando os campos repletos de ovelhas e vacas, nos levava às margens do rio Nive. A noite, voltamos para o Albergue, comemos castanhas assadas, rodeados dos nossos novos amigos do sul da França, nossa igreja, nossa família.

Castanhas em Itxassou e dentro do carro, voltando de Paris, eu e Deus, deixando para trás a capital com seus engarrafamentos, sua poluição, enquanto via passar pela janela a França inteira, saboreava os deliciosos pés-de-moleques de Brasília.

Um por todos e todos por um.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012



A geleia de figo.





À caminho do Conservatório de Musica Maurice Ravel de Bayonne (o compositor nasceu aqui), liguei para um amigo. Meu amigo francês, pastor também, grande amigo de muitos carnavais. Daqueles que conheci fora da pátria amada. Carnaval europeu, claro. Naquela segunda feira, dia 17 de setembro, ia passar meu primeiro teste para conseguir uma vaga no disputado curso de canto de Madame Du Château de Bercaia. Partição do Messias de Händel debaixo do braço, liguei para o amigo. A voz rouca, do outro lado do telefone falava de cansaço, de tristeza, de lagrimas. As angustias tantas do ministério pastoral as vezes não poupam ninguém. Nem mesmo aquele rosto radiante de meu amigo francês, que a gente sempre pensa ver sorrindo. Ninguém é feito de ferro, nem mesmo pastor, nem crente algum. Somos todos de carne e osso, vasos de barro, que Deus escolheu para encher de sua Vida, tesouro eterno e glorioso.

O telefone na mão, caminhava pelas ruas agradáveis da cidade medieval, enquanto ouvia os lamentos de meu amigo. Os portões do Conservatório de Musica de Bayonne, casa da orquestra sinfônica da Costa Basca, apareciam do outro lado da avenida. Edifício histórico, com seu jardim interior, com sua capela, sua torre do relógio.. Antigo monastério, o lugar guarda aquele ar de coisa centenária, porem agradável e convidativo. O longo corredor com suas arcadas que dá para a porta principal do edifício parecia ainda mais longo naquele dia, quando ainda ecoava no meu ouvido os lamentos de meu amigo.

Madame du Château de Bercaia, uma grande cantora lirica, me recebeu com um grande sorriso. A senhora já foi sabendo que sou pastor e quis saber se somente cantava musica sacra, ou cantava profana também. 'Primeiro contra-tenor que recebo em minha classe.' E possivelmente o único pastor que aquela senhora que tem a minha idade jamais viu. Se contra-tenores são raros por aqui, pastores ainda mais. Consegui passar o primeiro teste e volto hoje para cantar mais uma do Messias; 'He was despised', baseado em Isaías 53.

Chegando em casa, vi a figueira repleta de frutos. A figueira no jardim da casa pastoral da igreja reformada de Bayonne, onde moramos. No norte fiz muita geleia de framboesa, groselha e ameixa, aqui no sul, os figos seriam minha próximas vitimas. Muito importante numa certa culinária do sul da França a geleia de figo nos encanta! Carnes com geleia de figo, patê de figado de ganso com geleia de figo e tantas outras delicias de deixar água na boca.

Os figos e o açúcar em breve não passariam de uma mistura escura e viscosa. A panela para fazer geleia eu herdei de uma avó de minha esposa, a colher de pau trouxe do Brasil. A musica barroca daquela manhã ainda ecoava nos meus ouvidos. O Pierre, pianista do classe de canto lirico, correndo com o Handel no seu piano longo, preto, com sonoridades que continuam vibrando mesmo quando a gente esta longe da sala. Enquanto mexia a galeia, pensava na musica inspirada em Malaquias 3 ecoando nos longos corredores do conservatório. Musica divina, inspirada, profética: 'But who may abide the day of his coming?' (Quem poderá suportar o dia de sua vinda?). A fuga do Handel avançava vigorosa num momento em que a orquestra parecia ter ficado louca. Os violinos choravam e o solista proclamava: 'Fogo que devora, que purifica...'. O compositor parece ver o Messias andando pelas ruas empoeiradas da Palestina trazendo à realidade do Reino Celeste para gente sentada no desespero, na angustia, à sombra da morte. O figos também sentiam o fogo, não tendo para onde fugir, frutas transformadas em geleia. Enquanto mexia a mistura eu pensava no que meu amigo me havia dito ao telefone naquela manhã.

'Voltando para casa na sexta-feira passada, meu coração quase parou Junior. Quanto sofrimento a gente ainda tem que enfrentar neste país? Terra árida, terra de desafios que as vezes parecem maiores do que a força que recebemos. Meu telefone tocou, quando voltava de uma conferencia para pastores no leste.. Recebi uma noticia ruim, muito mesmo que me deixou paralisado. Uma senhora da igreja....Cheia de vontade de conhecer a Vida Eterna, tínhamos grandes expectativas, iriamos batiza-la... Três filhos e um marido, alcoólatra...Junior, eu estou tão triste. A senhora for encontrada pela família pendurada, enforcada...na cozinha.. O que vou fazer Junior? A mulher se suicidou meu amigo! Que vou dizer a família? Eu pensei que aquela senhora estava às portas do Reino de Deus.'

'Que triste! Sinto muito.', eu disse, não sabendo muito o que dizer.



Um por todos e todos por um.


terça-feira, 11 de setembro de 2012


A menina dos olhos azuis



À mais de 300 quilômetros por hora o trem bala, atravessava a Bourgogne (burgonha) naquela quinta feira, 30 de agosto, 2012. Depois de quase uma semana de conferencia, estava à caminho de Paris, de onde pegaria um outro trem rumo as terras do norte, onde moramos quase 14 anos. Aquela havia sido uma semana muito interessante, com direito a comunhão, comida boa, visita de lugares famosos e a distante vista do maravilhoso Mont Blanc, o topo da Europa coberto de neve no verão europeu.

Missionários de vários países se reuniram numa terra histórica para a igreja cristã francesa afim de discutir estrategias, compartilhar lagrimas e frustrações, orar, jogar voleibol e conversa fora, saboreando a comida da maior região gastronômica da França.

A semana foi cheia de emoções fortes. Enquanto via as vinhas passando pela janela do trem, me lembrei da visita à Cluny que havíamos feito durante a semana. Aquele foi um dia ensolarado e agradável. Um lindo dia para atravessar os vinhedos da Bourgogne. Fundada em 910, a abadia de Cluny foi durante 3 seculos o maior centro católico da Europa. Vendo as ruínas da imensa igreja, que foi a maior do mundo, me lembrei das palavras do Cristo: 'Não ficará pedra sobre pedra..'. Imensa, colossal, Cluny impressiona o visitante pela sua beleza, longevidade e principalmente pela arquitetura ousada. O que vimos não passa de 10% do que ali existia, pois pela cidade passou a Revolução Francesa. A partir de 1790, a abadia, depois de ter sido fechada, começou a ser demolida e as pedras da igreja foram vendidas para construir palácios e casas em muitas cidades da França e de outros países da Europa. Há quem diga que o poder e a riqueza destruíram Cluny antes que a Revolução o fizesse. Quando a pedra e o ouro se tornam mais importantes do que o Cristo Vivo e sua mensagem de vida eterna, a igreja não passa de um edifício vazio, uma organização morta e prestes a desparecer na esquina da historia.

No trem, também pensei no quanto o silencio fala alto em Cluny. As pedras frias, não podem proclamar a verdade do Cristo que liberta, que muda a existência das pessoas. Aquele silencio que a gente aprecia, mas que não muda nada. O silencio das pedras, das pilastras, das estatuas mudas dos santos. Imensos corredores calados para sempre.

Por aqui, a vida se passa nos trens balas da vida francesa. Trem de Lyon para Macon, de Macon para Paris, de Paris para Lille, de Lille para Paris e de lá para Bayonne. No dia 3 de setembro voltei à Região Basca, meu novo lar. A paisagem não é a mesma da Bourgogne, com suas colinas cobertas de vinhas, nem das terras planas do Norte da França. No norte, quando a gente pensa que as terras planas não poderiam ser mais planas, elas descem abaixo do nível do Mar do Norte. Na Aquitânia, o plano das Landes, entre Bordeaux e Bayonne, sobe rumo ao céu e se torna a segunda cadeia de montanhas do país, os Pirineus.

As florestas sem fim das Landes, finalmente chegavam ao fim e a catedral no centro medieval de Bayonne aparecia na linha do horizonte, com os Pirineus como pano de fundo. E eu volto à pensar na menina, que vi no culto de domingo dia 2, em Bethune. 'Sua filha não veio com você?', me perguntou a menina, olhos azuis tristes e melancólicos. Minha filha mais nova era a única amiga cristã que ela tinha, numa igreja onde minhas filhas, durante anos, foram as únicas crianças. Isso até que a mãe da menina dos olhos azuis chegasse na igreja. Minha filha podia finalmente ter uma amiga da idade dela, alguém com quem brincar depois do culto, depois da escola. Mas em julho nos mudamos e a menina dos olhos azuis perdeu a amiga, a única da igreja.

Ouvindo o barulho da longa serpente de ferro, parando na estacão de Bayonne, eu fiquei pensando no quanto seria bom que outros casais com crianças aparecessem na igreja de Bethune, para que a menina tivesse uma outra amiga. No mundo laico francês, nas escolas da vida, nos bairros da vida, em lugares como Bethune, poucas são as crianças que tem o privilegio de brincar com outras crianças que acreditam que 'Jesus ama as crianças do mundo inteiro'. O privilegio de saber que ele não mora em templos feitos por mãos de homens, mas no coração daqueles que o receberam como Senhor, Salvador, Vida Eterna. As vezes a gente se esquece que Deus, um dia se fez criança e habitou entre nós.



Um por todos e todos por um.




quinta-feira, 30 de agosto de 2012








O menino africano no ônibus







A vida continua, luto, ou não, lagrimas e tristezas, cansaço...A vida sempre continua e geralmente não depende de nós, pois somos tão limitados, tanto no tempo como no espaço. Pensamos ser donos de tanta coisa e quanto mais vamos ficando sábios, aprendemos que não controlamos coisíssima alguma. Com fé, ou sem, com dinheiro, ou sem nada no bolso, a gente vai passando e a vida continua e Deus é o único que conhece o final da historia.

No domingo dia 19 de agosto, à noite, quando passeávamos à beira mar em Anglet, cidade vizinha de Bayonne onde chegamos final de julho, vendo os surfistas, vendos as ondas, vendo o oceano, pensei no quanto nossa vida mudou nestes últimos meses. Do norte, viemos para o sul, das terras baixas flamengas, viemos à região basca, litorânea e montanhosa. Dos 16 graus no verão, viemos aos 35. Rio de Janeiro parece mais perto agora!

Como uma noticia lida num email pode trazer tanta mudança, tanta duvida, tanto medo à vida da família missionaria! Depois de quase 14 anos na terra da cerveja e da batata frita, dos queijos 'cheirosos', e das torres no meio das praças medievais, em janeiro fomos informados, que por razoes econômicas, teríamos que deixar a região. Feliz 2012!

Que forma maravilhosa de começar um ano! A família questiona, o coração quase para de bater e o povo ao redor, acostumado com a nossa presença, diz que vai sentir saudades. Vida missionaria tem dessas coisas, a gente chora quando chega, e chora quando descobre que vai ter que arrumar as malas e partir.

E como a Madona no filme Evita, a gente cantava: 'So what happens now? Where am I going to? (O que vai acontecer agora? Para onde eu vou?) A única coisa que sabíamos, era que não tínhamos a minima ideia do que faríamos. Voltar para o Brasil? Não tínhamos o dinheiro das quatro passagens. Para o país de Robin Hood, onde moram meus sogros? Para Marte, não, parece que não acharam vida por lá ainda. A única certeza, era que teríamos que deixar nossa casa em Bethune, a cidade, a região e possivelmente la Republique de France.

No final daquele mês, eu tinha uma reunião marcada para missionários, de vários países e organizações diferentes trabalhando com a igreja batista francesa,perto de Versailles. A mesma onde moraram os últimos reis da França. Como tudo estava pago, hospedagem e trem, eu fui. Meu coração continuava gritando: 'What happens now?'.

Num dia, durante a conferencia, um representante de uma certa igreja do sul, sentou do lado oposto da mesa na hora do almoço, no convento onde a conferencia estava acontecendo. 'Então você é Junior Damaceno, soube que estão voltando para a Inglaterra.' Alguém já havia decidido por nós, que estávamos voltando para a Inglaterra. A gente pensou que deveria voltar para a Inglaterra, alguém leu nosso pensamento e uma pessoa do sul da França, em menos de um mês, já sabia que os pobres missionários teriam que sair batidos. Mas queríamos ficar, nesta nação que se tornou nossa casa.

A conferencia chegou ao fim e eu, frustrado, ia pegar o trem e voltar para o norte, gelado naquele final de janeiro. No fundo eu tinha ido aquela conferencia pensando que alguém, ou um anjo, iria me dar uma boa noticia, me dizer o que eu deveria fazer. Nada! No momento de partir da conferencia, eu vi um amigo, outro missionário, que conheci há anos atras numa outra conferencia em Paris, conversando com o mesmo rapaz do sul, com quem eu havia conversado na hora do almoço, no dia anterior. 'Junior, estou pegando uma carona para a estacão de trem com meu amigo do sul, você quer vir?'.

Quando o carro chegou na estacão, este meu amigo, pegou suas malas e me disse: 'Este rapaz quer conversar com você. Vocês vão a um barzinho desses perto da estacão e conversem. Eu estou indo para Paris pegar o meu trem.' Eu fique ali, olhando para um rapaz que nem conhecia. Me senti como um adolescente que quer namorar com uma menina, mas não tem coragem de convida-la para tomar uma coca-cola.

Lá fomos nos para um 'Café' perto da estacão. Não tomei coca-cola, mas uma xícara de chocolate bem quente e o rapaz já foi direto ao assunto: 'Estamos procurando um pastor, mas não temos dinheiro, você aceita o desafio? Deus provera.' Passamos uma hora conversando e eu saí dali cheio de esperança.

Não chorei ali na frente daquele rapaz, pois não o conhecia, vontade não faltou. Voltei para Paris nas nuvens. Na capital, pequei o trem bala para Bethune, ainda meio zonzo, sonhando acordado. Dentro da estacão soube que ao chegar em Arras, capital do Departamento onde se encontra Bethune, eu teria que sair do trem e pegar um ônibus, pois haviam problemas na linha entre Arras e a cidade onde morávamos. Peguei minha mala e saí à procura do ônibus que me levaria de volta ao lar. Meu coração cheio de esperança, ansioso para chegar em casa e contar para a minha esposa que uma porta estava se abrindo.

Uma senhora de origem africana entrou no ônibus com um menininho e se sentaram atras de mim. O ônibus saiu da estacão de trem e virou à direita, passando não longe da famosa Grand Place d'Arras, cidade histórica e importante na região. Do lado de fora, o frio era intenso, a cidade estava mergulhada no escuro das noites invernais do norte. Quando íamos saindo da cidade, o menino diz: 'Mamãe, olhe estamos na cidade de Biarritz.' A mãe disse: 'Nada disso menino, estamos em Arras.' Mas o menino não se deu por convencido: 'Não mamãe, estamos em Biarritz.' Eu pensei ter visto Deus sorrindo naquele momento. O que o menino não sabia, era que eu acabara de beber uma taça de chocolate quente à dois passos da casa do Louis XIV com um rapaz do conselho da igreja de Biarritz.

Um por todos e todos por um.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012




Os gira sóis de Cognac


O sol matinal brilhava intensamente e o céu estava de um azul Brésil no dia 26 de julho quando passamos perto da Grand Place de Bethune. Quando passamos pela rue Fernand Bar e vimos pela ultima vez, la Charite, onde a igreja se reúne desde 2008. Depois viramos à direita e passamos em frente ao Studio teatro, cuja cena conheço muito bem. A grande giratória perto da estrada de ferro, o centro comercial, a entrada do convento das carmelitas... Uma vez nosso carro passado pelo posto de pedágio da rodovia dos ingleses, a A26, chegávamos nos limites da cidade, a primeira a nos acolher na França em 1999. Estávamos realmente saindo do norte, da porta da Bélgica, seguindo a estrada que nos levaria à uma nova vida em Biarritz/Bayonne, na fronteira com a Espanha.

Tínhamos todo o tempo para chegar no sul da França, sendo assim evitamos Paris, e as rodovias caras do país. Aproveitando o sol do verão, atravessamos os muitos departamentos e regiões pelas estradas que atravessam campos e cidades, vilas e castelos....

Primeiro nosso departamento do Pas-de-Calais e depois a Picardie, terras das catedrais. Vimos cidades importantes na história do norte da França, vimos campos de batalhas da guerra dos Cem anos, da primeira e da segunda guerra mundial. Os campos enfeitados de túmulos brancos das batalhas sangrentas dos homens, contrastando com os de trigo e batata. Depois veio a Normandie, a qual atravessamos de norte a sul. Um departamento magnifico, um lugar de paisagens bucólicas, terra do povo normando, terra de historia e de grandes batalhas também.

Nessa nossa peregrinação francesa, atravessaríamos rios míticos, cantados em prosas: O rio Sena, que tem o privilegio de banhar a historia atravessando a cidade luz. Aquele que contempla a torre Elfel, a dama de fero. A Loire, reconhecido como patrimônio da humanidade pela Unesco e tantos outros. Foram os rios que passaram em minha vida...

Paisagens de cartão portal passando pela janela do carro, enquanto atravessávamos vilarejos, subindo e descendo colinas nesta nação, que se vangloria de ser o país com paisagens mais diversificadas do mundo.

Da ponte sobre o rio Sena vimos Rouen, onde Jeanne D'Arc foi queimada viva em 1431, após ter sido julgada por heresia. Passamos por Orleans onde em 1429, com ajuda de uma adolescente do leste do país, o exercito francês liberou a cidade do jugo inglês. A mesma virgem que ouvia vozes de mortos, a mesma que queimada em Rouen. Em Tours, capital da região dos castelos do rio Loire, cansados de fazer turismo e atravessar vilarejos atras de caminhões poloneses e tratores franceses, pegamos a rodovia.

Descendo pela A10, passamos por Poitiers, onde em 722 Charles Martel derrotou os mouros que envidaram a França vindo da Espanha.

Outras tantas cidades da Região do Poitou-Charentes iam ficando para trás, mas nossos olhos não viam mais as cidades, nem as torres, nem os castelos, mas somente os campos dourados dos gira sois naquela tarde de verão. Foi naquela região, em meio aos campos floridos, que passamos a noite, numa casa de veraneio pertencente a uma professora da escola onde minha filhas estudaram em Bethune. Tudo coisa de ultima hora, providencia do Altíssimo.

Na manhã do dia seguinte saímos de Cognac e deixamos os campos de gira sois, seguindo na direção da região de Bordeaux, a mais importante região vinícola da Franca. Uma ponte enorme nos levou ao outro lado do rio Garonne e nos fez entrar na ultima região antes de chegarmos à nossa terra prometida. Les Landes, plana como a Holanda, parecia não terminar nunca...

No inicio da tarde do dia 27, Bayonne nos recebeu medieval e ensolarada. Os dois rios atravessando a cidade, as pontes, as flores, as janelas vermelhas, verdes e azuis sobre o fundo branco das paredes...tudo muito bonito e festivo. Aqui iremos morar, e em Biarritz, cara e chique demais para missionários pobres, iremos pastorear a igreja batista, nossa próxima missão aqui na França. Bem vindos a Região Basca francesa, onde os Pirineus se lançam no oceano Atlântico!

A cronica poderia ter parado aqui, mas não, o tempo não para, a vida continua, as vezes longe dos campo dos gira sois. Longe dos sorrisos e das festas da chegada à cidade basca. Dia 30 de julho bateu a porta, sem piedade alguma, sem mesmo avisar.

Este dia 30, segunda-feira, será para sempre um dia inesquecível para todos nós. No amanhecer deste dia ensolarado como um sul da França, os últimos vestígios da Festa de Bayonne iam ficando para trás. Alias, chegamos na nossa nova cidade no segundo dia da festa que dura cinco e deixa a cidade com cheiro de vomito, urina e pecado. Um milhão de pessoas vieram a festa este ano. No sábado, sem saber por onde passava, guiado por jovens da igreja de Biarritz, me vi rodeado de milhares de pessoas vestidas de branco e vermelho, e pior ainda, em meio a vacas loucas que corriam atras das pessoas. Senti um medo ancestral, vendo a multidão se dissolvendo, e vindo na minha direção, feito onda de tsunami que arrasta tudo quando passa furiosa.

Se escrevo essa cronica é que sobrevivi minha primeira festa de Bayonne, um tipo de carnaval do Rio regado a birita francesa com vacas correndo atras das pessoas nas ruas medievais.

Eu estava falando de segunda, pois a esta altura as vacas voltaram para o curral. Falando principalmente daquele momento gravado para sempre na minha mente. As olimpíadas iam se desenrolando no canal 2. As meninas brincavam no computador, Susan e eu continuávamos abrindo caixas e fazendo desta casa nosso lar. Foi ao ver o 0055 no meu celular que eu soube que uma noticia ruim me seria anunciado.

A voz de minha prima continua soando nos meus ouvidos. 'Junior tenho uma péssima noticia.' O eco da péssima noticia ainda ecoa, ainda me deixa sem sono, ainda me faz sofrer. Sofrer pela distancia, pelo vazio, pela vontade de estar no Brasil.

'Sua mãe faleceu.' Mãe é possivelmente a palavra mais sublime que existe. Ninguém quer ver associada à essa doçura, o abominável verbo falecer.

Ah! Que venha o Cordeiro de Deus! Que ele volte, amanhã, se possível. Que as miríades de anjos e a esposa continuem gritando MARANATA, porque as vezes a vida sobre esta terra de Bayonne e Gomorra, se torna um caos, quando a gente ouve este verbo sendo conjugado, esse verbo sempre no passado: faleceu!

De segunda até agora eu continuo voltando ao dia 26, semana passada, quando chegávamos na região de Cognac (se lê Conhaque). Naquela sublime região, os campos competem com os vilarejos medievais, dos quais alguns são galo-romanos. Entre elas, as plantações disputam para ver quem dá mais beleza à paisagem: as vinhas de Cognac, ou os campos de gira sois! Tanto cedo pela manhã, como ao por-do-sol, os gira sois são maravilhosos e a gente não quer sair dali, quer ficar a vida toda vendo aquela beleza sem igual.

Lagrimas escorrem rosto abaixo, meu rosto, quando penso, não nos campos de Cognac, mas naqueles celestiais, que minha mãe agora contempla, para sempre na presença do Cordeiro de Deus.


Um por todos e todos por um.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012




A geléia de framboesa









Voltando de Lille, vi, na Impasse du Beau Marais, onde moramos, um carro parado. Um carro branco, pequeno, estacionado na frente de nossa casa. Ah! O carro da dona Boureau-Marteau. Aquela senhora que ficamos conhecendo no ano passado. Uma longa historia, como tantas contadas e escritas em cronicas loucas e tantas ainda nunca contadas, nunca lidas.
Dia 28 foi dia de reunião, daquele tipo que, ou você chora, ou fica na sua e deixa a coisa acontecer. Daquele tipo que você viaja enquanto o povo fala, para não ter que suportar a verdade que as vezes doí tanto. Some da terra para não ter que pensar na realidade da vida que nem sempre é mar de rosas. Foi uma reunião para falar de nosso futuro. Para tratar de nossa vida. Reunião com pessoas que decidem, que fazem acontecer. Logo neste dia 28! Tudo que eu mais queria! Feliz Aniversario!

Tive, mais uma vez que explicar a situação nossa, presente, passada e futura. A ultima realidade, porem, pertence a Deus, mas a gente não pode dizer isso, pois o povo quer saber dos planos, dos projetos. 'Com a perda de meu trabalho como capelão, possivelmente teremos que sair da região.' Disse. 'Vamos sentir sua falta. Todos esses anos trabalhando juntos.', disse um pastor que conhecemos em 1997, nosso primeiro contato na França, antes mesmo de virmos morar aqui.

O emprego/ministério com os sem domicilio fixo, vai realmente terminar este ano. Em janeiro soube que terminaria no final do mês de março de 2012, mas depois da reunião de ontem, vou, finalmente ficar até junho. Em julho faremos malas e cuias e sairemos da região onde chegamos em 1999. Nossa filha Stéphanie nasceu aqui, Mélanie chegou com poucas semanas, tendo nascido nas terras do Robin Hood e do xerife de Nottingham. 13 anos passados no norte da França. O tempo voa!

A crise bateu à porta e a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. E o capelão se vai. Se vão também 12 anos ouvindo as misérias da rua, orando pelas lagrimas daqueles que não conhecem nem pai, nem mãe, nem irmãs, nem irmãos, e que cresceram num orfanato do estado providencia. Vive la Republique! 12 anos sentindo os odores das ruas da metrópole de Lille, e das nações que passam pelos centros, onde venho atuando como capelão. No final do dia, um bom perfume tenta trazer de volta ares primaveris aos nossos locais, mas tem odores, que nem chanel numero 5 dá jeito. Aqueles odores de morte e de perdição que somente o cheiro suave do sacrifício do Cordeiro de Deus pode tirar.

O carro estava lá, quando voltei para casa trazendo camarão de Honduras e sorvete Häagen-Dasz que comprei no Carrefour da esquina, para festejar meu aniversario.

'Bonjour madame Boureau-Marteau.' disse, entrando em casa. 'Joyeux anniversaire!', ela disse. Uma senhora agradável que até trouxe presentes para o pastor. Um professora aposentada, com três filhos adultos, dois quais dois sofrem com problemas psiquiátricos. Muito sofrimento para esta senhora. Mas ontem, esquecemos um pouco dos sofrimentos e das lagrimas e tomamos chá inglês com bolo e conversamos sobre tantas coisas. A senhora trouxe uma torta caseira, um livro sobre a vida da madre Teresa de Calcutá e umas plantas primaveris para meu jardim, neste final de inverno.

Ela nos contou como chegou em nossa igreja ano passado. 'Eu havia decidido doar umas roupas que não usava mais, uns livros...Fui àquela loja onde se vende roupas usadas. Aquela obra caritativa na cidade vizinha. Lá estava uma senhora de sua igreja, que havia levado roupas usadas também. No meio dos livros havia uma Bíblia que alguém me havia dado. 'Porque a senhora esta doando esta Bíblia?' Me perguntou a dona que pertence à sua igreja. Eu disse: para que serve esse livro? A senhora então me explicou que a Bíblia era a Palavra de Deus e que havia em Béthune uma igreja evangélica e que havia um pastor brasileiro....'.

Desde então esta senhora tem vindo à nossa igreja e descoberto que Deus se fez homem, habitou entre nos e se preocupa com os sofrimentos dela.

Vendo o carro da madame Boureau-Marteau se distanciando, ontem, saindo da Impasse du Beau Marais, me lembrei de quando, no ano passado, esta mesma senhora, veio trazer um presente para meu aniversario que ela pensava ter sido em junho. 'Eu soube que hoje o senhor está fazendo aniversario? Trouxe esse pote de geleia de framboesa, foi eu mesma quem fiz.'

Madame Boureau-marteau, ainda não sabe que este será nosso ultimo 28 de fevereiro em Béthune. Não sabemos como será escrito o próximo capitulo de nossa vida e nem sabemos para onde iremos. Todavia podemos com certeza dizer que: 'Ate aqui nos ajudou o Senhor'.

Um por todos e todos por um