A
geleia de figo.
À
caminho do Conservatório de Musica Maurice Ravel de Bayonne (o
compositor nasceu aqui), liguei para um amigo. Meu amigo francês,
pastor também, grande amigo de muitos carnavais. Daqueles que
conheci fora da pátria amada. Carnaval europeu, claro. Naquela
segunda feira, dia 17 de setembro, ia passar meu primeiro teste para
conseguir uma vaga no disputado curso de canto de Madame Du Château
de Bercaia. Partição do Messias de Händel
debaixo do braço, liguei
para o amigo. A voz rouca, do outro lado do telefone falava de
cansaço, de tristeza, de lagrimas. As angustias tantas do ministério
pastoral as vezes não poupam ninguém. Nem mesmo aquele rosto
radiante de meu amigo francês, que a gente sempre pensa ver
sorrindo. Ninguém é feito de
ferro, nem mesmo pastor, nem crente algum. Somos todos de carne e
osso, vasos de barro, que Deus escolheu para encher de sua Vida,
tesouro eterno e glorioso.
O
telefone na mão, caminhava pelas ruas agradáveis da cidade
medieval, enquanto ouvia os lamentos de meu amigo. Os portões do
Conservatório de Musica de Bayonne, casa da orquestra sinfônica da
Costa Basca, apareciam do outro lado da avenida. Edifício
histórico, com seu jardim interior, com sua capela, sua torre do
relógio.. Antigo monastério, o lugar guarda aquele ar de coisa
centenária, porem agradável e convidativo. O longo corredor com
suas arcadas que dá para a porta principal do edifício parecia
ainda mais longo naquele dia, quando ainda ecoava no meu ouvido os
lamentos de meu amigo.
Madame
du Château de Bercaia, uma grande cantora lirica, me recebeu com um
grande sorriso. A senhora já foi sabendo que sou pastor e quis saber
se somente cantava musica sacra, ou cantava profana também.
'Primeiro contra-tenor que recebo em minha classe.' E
possivelmente o único pastor que aquela senhora que tem a minha
idade jamais viu. Se contra-tenores são raros por aqui, pastores
ainda mais. Consegui passar o primeiro teste e volto hoje para cantar
mais uma do Messias; 'He was despised', baseado em Isaías 53.
Chegando
em casa, vi a figueira repleta de frutos. A figueira no jardim da
casa pastoral da igreja reformada de Bayonne, onde moramos. No norte
fiz muita geleia de framboesa, groselha e ameixa, aqui no sul, os
figos seriam minha próximas vitimas. Muito importante numa certa
culinária do sul da França a geleia de figo nos encanta! Carnes com
geleia de figo, patê de figado de ganso com geleia de figo e tantas
outras delicias de deixar água na boca.
Os
figos e o açúcar em breve não passariam de uma mistura escura e
viscosa. A panela para fazer geleia eu herdei de uma avó de minha
esposa, a colher de pau trouxe do Brasil. A musica barroca daquela
manhã ainda ecoava nos meus ouvidos. O Pierre, pianista do classe de
canto lirico, correndo com o Handel no seu piano longo, preto, com
sonoridades que continuam vibrando mesmo quando a gente esta longe da
sala. Enquanto mexia a galeia, pensava na musica inspirada em
Malaquias 3 ecoando nos longos corredores do conservatório. Musica
divina, inspirada, profética: 'But
who may abide the day of his coming?'
(Quem poderá suportar o dia de sua vinda?). A fuga do Handel
avançava vigorosa num momento em que a orquestra parecia ter ficado
louca. Os violinos choravam e o solista proclamava: 'Fogo que devora,
que purifica...'. O compositor parece ver o Messias andando pelas
ruas empoeiradas da Palestina trazendo à realidade do Reino Celeste
para gente sentada no desespero, na angustia, à sombra da morte. O
figos também sentiam o fogo, não tendo para onde fugir, frutas
transformadas em geleia. Enquanto mexia a mistura eu pensava no que
meu amigo me havia dito ao telefone naquela manhã.
'Voltando
para casa na sexta-feira passada, meu coração quase parou Junior.
Quanto sofrimento a gente ainda tem que enfrentar neste país? Terra
árida, terra de desafios que as vezes parecem maiores do que a força
que recebemos. Meu telefone tocou, quando voltava de uma conferencia
para pastores no leste.. Recebi uma noticia ruim, muito mesmo que me
deixou paralisado. Uma senhora da igreja....Cheia de vontade de
conhecer a Vida Eterna, tínhamos grandes expectativas, iriamos
batiza-la... Três filhos e um marido, alcoólatra...Junior, eu estou
tão triste. A senhora for encontrada pela família pendurada,
enforcada...na cozinha.. O que vou fazer Junior? A mulher se suicidou
meu amigo! Que vou dizer a família? Eu pensei que aquela senhora
estava às portas do Reino de Deus.'
'Que
triste! Sinto muito.', eu disse, não sabendo muito o que dizer.
Um
por todos e todos por um.