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domingo, 25 de novembro de 2012




A grelha de São Lourenço





O trem subia, feito serpente de ferro, as montanhas do país Basco espanhol. No inicio da viagem, as paradas anunciadas em espanhol, basco e inglês, era folclórico e interessante. Seis horas depois, os anúncios tri-lingues enchiam a paciência dos passageiros e nosso maior desejo era que o bendito trem chegasse em Madri. Eu estava indo ao congresso Fortalecer. Outros tantos brasileiros vindos de vários países da região, também compareceram. Naquele dia ensolarado de novembro, assim que o culto acabou em Biarritz, corri à estacão e peguei um trem que chegava de Paris, atravessei a fronteira e peguei o famoso trem poliglota em Irun.
Primeira vez em Madri. Amei o céu azul e a limpeza das ruas da capital espanhola. De Madri se vê as montanhas onde a conferencia aconteceu. Um outro trem e a gente chega aos pés dos montes, sobe uma rua por onde passaram homens e mulheres dos mais poderosos que a Europa conheceu e chega na Casa San Jose.

Fortalecer é aquele tipo de encontro, ao qual todo missionário, longe de casa, sonha participar. A gente, que vive do outro lado do mundo em países onde uma igreja de 100 pessoas já é quase um mega church e em 10 anos de pastorado se batiza sete pessoas. Aquele tipo de encontro que, ou te deixa com complexos de inferioridade e deprimido, ou trás alento novo ao seu coração. Você diz consigo mesmo: 'Se Deus pode utilizar os mineiros, paulistas, cariocas, o pastor tal, a igreja tal, nesta e naquela circunstancia, ele por certo fará algo tremendo aqui na França, Itália, Portugal, Espanha... Contextos, culturas e línguas diferentes, mas o mesmo Deus'.

O louvor devorando nossos corações, consumindo o silencio de anos cantando com apenas quarenta pessoas. Estar com tanta gente do país amado e que, como a gente, saiu de casa para anunciar as Boas Novas em terras europeias, consola tanto! Ficávamos sem saber se riamos ou chorávamos. A maioria das vezes, ambos.

A animação é grande. Os preletores vem daquelas igrejas que são tão grandes que aos olhos franceses, espanhóis, portugueses, italianos, parece grande demais para ser verdade. Um dos responsáveis dá as boas vindas aos missionários e pastores vindos de vários países da Europa; vindos dos USA e de outros lugares que por motivos de segurança, não serão citados nesta cronica.
As apresentações continuam. O momento tão esperado chega finalmente. Os preletores se levantam e vão à frente. A gente fica meio decepcionado, tal o profeta Samuel diante da simplicidade do pastor de ovelhas que ele ungiria rei de Israel. Eu imaginava o pastor tal bem maior, menos gordo e mais bonito também.

Pastores super ocupados, dois quais, alguns eu nem imaginava que um dia apertariam minha mão. Um deles até me perguntou se não me havia visto em algum lugar. Eu fiquei contente, era de se esperar, mas por certo que um homem que prega todos os domingos para milhares de pessoas, não saberia quem era o franco-brasileiro, menos conhecido do circuito evangélico, que segundo certas estatísticas, passam dos 40 milhões.

Para meus irmãos franceses é quase que querer comparar nosso planeta com a galaxia onde moramos. São números que não se pode entender aqui.

E lá estavam os pastores famosos e cheios de compromissos, que atravessaram o oceano para falar para um gato pingado de missionários e pastores. Quem se importa em falar para gente como nós, que não damos ibope algum! Alguém já ouviu falar da igreja evangélica francesa, espanhola, italiana, portuguesa, etc... que tem 30, 40, 50, 10, membros que não publica revista alguma, que não grava cd algum de louvor, que quando batiza uma única alma, já faz festa? Mas por incrível que pareça, os homens famosos vieram, falaram, encorajaram e fizeram a gente chorar.

Números não impressionam a Deus, creio. Alias nada deve impressionar o Senhor do Universo. Se um dia for possível que ele se surpreenda, imagino que vai ser com a simplicidade do seu povo, com o coração simples que se importa, que chora e que abraça o missionário sem nome. Deus se alegra com a alma singela, acostumada a orar por milhares de uma só vez e que ao orar por você diz: 'Senhor abençoe o Damaceno...eu profetizo que a obra do Senhor na França não morrerá, mas prosperara....'

Saindo da Casa San Jose, virando à direita, subindo a ladeira, a gente chegava aos pés de um dos maiores monumentos do país, O El Escorial. Um monumento complexo, construído pelo rei Filipe II da Espanha no final do seculo XVI, em comemoração da vitoria na Batalha de Saint Quentin em 10 de agosto de 1557 sobre as tropas de Henrique II, rei da França; e para servir de lugar de enterro dos restos mortais de seus pais, o Imperador Carlos I e Isabel de Portugal, assim que seus próprios e dos seus sucessores. O El Escorial é também um santuário erigido à gloria da contra-reforma. Ali dentro estão guardadas uma das maiores coleções de relíquias do mundo católico. Cerca de 7 500 relíquias são guardadas no famoso monumento.

A planta do edifício, com as suas torres, recorda a forma de uma grelha, pelo que tradicionalmente se diz que se fez assim em honra à São Lourenço martirizado em Roma no suplicio da grelha.

As cinzas de Charles Quint, pai do construtor do El Escorial e famoso rei espanhol, nascido em Gand, na Bélgica e que reinou sobre os Países Baixos (norte da França, Bélgica e Holanda), foram transferidas e colocadas na catedral dentro do famoso monumento, ao lado de seu filho Filipe II. O mesmo Charles que combateu os protestantes no inicio da Reforma e foi Imperador do Santo Império Romano Germânico. Considerado o príncipe mais poderoso do seculo XVI. Um homem que viveu apenas 58 anos, mas teve grande influencia na historia da Europa e das Américas.

Olhando o impressionante monumento funerário a gente fica pensando como um homem tão poderoso se resume hoje, a um amontoado de poeira! De belo somente o mármore que cobre a poeira fúnebre que ninguém ousaria expor. Um homem temido por tantos, grande conquistador, defensor da santa fé romana, reduzido à poeira histórica.

Voltando da conferencia, fiquei pensando que no final das contas, poderoso mesmo, só aquele que vive e reina pelos seculos dos seculos diante de quem todos nós, crentes, pastores, missionários, mercenários, reis, presidentes, poderosos, gentalha em geral, um dia compareceremos.

Um por todos e todos por um.








sábado, 10 de novembro de 2012



A lata de azeite de cinco litros








Do alto da colina em Bidart, se tem uma das mais belas vistas da Costa Basca. As vezes a gente torce para que o semáforo fique vermelho para que possamos ficar mais tempo observando a grandeza da natureza; contemplando a beleza sem igual que, graciosamente, nos é oferecida. Do lado direito, o atlântico azulado, com suas ondas gigantes e do outro os Pirineus cujos picos mais altos começam a branquejar. As montanhas mais próximas geralmente são azuis como o mar que faz da Costa Basca uma região surfista de renome internacional. Quem nunca ouviu da boca dos orgulhosos moradores da região: 'Moramos numa região onde se pode esquiar pela manhã e surfar à tarde.'

Ontem fomos a Espanha, passando pela estrada de Bidart. Ao parar no mesmo semáforo, perto do cemitério da cidade, eu vi, pela primeira vez, desde que viemos morar na região, que a neve havia chegado nos picos mais elevados da impressionante cadeia montanhosa. Aproveitando as férias de Todos os Santos (os santos não estão de férias, mas as crianças sim), estávamos indo à Espanha com as meninas. O céu azul, as montanhas azuis e o mar também, já bastam para sairmos por ai de carro, sem pressa, apenas observando tudo isso; deixando a alma se saciar de beleza e tranquilidade. Espanha por aqui rima com gasolina barata, cigarro barato e tantas outras coisas mais baratas, como a lata de azeite de 5 litros que, por incrível que pareca, custa apenas 15 Euros.

Alem de passear e ver o mar do outro lado da fronteira, a gente para no famoso Al Campo, o supermercado que na França se chama Au Champ e que em português se chamaria Ao Campo. Ali, no famoso supermercado nascido no norte da França, se compra caquis e mangas da Espanha, feijão preto do tipo brasileiro e outras coisas que aqui na França custam o olho da cara. Uma vez pelo menos a gente compra os 5 litros de azeite, pois vale a pena pois é tão mais barato! A gente volta para casa com a aquela ideia quase boba e pueril de que esteve em outro país, mesmo que tenha viajado apenas 30 minutos no carro.

Hoje voltamos à estrada N10 passando por Birdart. Como toda quinta, eu e minha esposa passamos por lá, indo estudar Tiago com um pequeno grupo na maravilhosa cidade de Saint Jean de Luz. Depois da reunião, afim de matar dos coelhos com uma cajadada só, íamos orar com a 'Madame e o Monsieur' du Catô Marquê. Senhor Marquê vem sofrendo de câncer tem mais de 3 anos. Semana passada eu fui orar com eles, juntamente com um outro senhor da igreja de Biarritz. Eu não conhecia o senhor Marquê, apenas havia encontrado sua esposa na igreja há duas semanas. Desesperada a senhora buscava ajuda, buscava conforto na oração.

As 13h30 passamos pela clinica onde o senhor estava internado. Da N10 se vê a clinica, mas geralmente as pessoas preferem olhar para o mar, do outro lado da estrada, ou para as montanhas que parecem surgir imponentes, colossais, de onde a cidade termina. Assim que a reunião terminasse, voltaríamos àquela clinica para orar.

14H30, o estudo avançava consideravelmente. De Tiago fomos à João e Romanos (o tema de hoje foi sobre as tribulações da vida). O telefone tocou varias vezes. Eu havia, de novo, esquecido de desligar meu celular. Como o mesmo não parava de tocar, decidi atender. Era a voz de madame Marquê, tremula, chorando, que me anunciava que seu esposo havia falecido às 13h00. Não consegui terminar o estudo direito. Me enrolei nos textos, fiquei meio paralisado. Portanto hoje não foi a primeira vez que tive que ir orar por uma família e ver um corpo informe, frio e pálido ainda na cama do hospital. Mas acontecimentos deste tipo sempre trás à tona realidades dolorosas de nossa própria historia.

Saímos às pressas da casa de nossa amiga e fomos orar com a senhora Marquê, que nos esperava ao lado do corpo de seu defunto marido. Um outro casal estava no quarto. Os amigos do defunto, cabisbaixos, tristes, esperando que os homens da funerária chegassem para levar o corpo do falecido.
'Como aguentar uma coisa tão dorida como esta! Monsieur du Marquê, era uma pessoa tão cheia de vida, que gostava de festa, gostava de dançar...' Disse a amiga.

Tudo muito recente, apenas uma hora e meia que o outrora senhor Marquê, havia cessado de respirar. Cheiro de morte é uma abominação com a qual ninguém se acostuma. Abri minha Bíblia e li o salmo 23, texto predileto de minha falecida mãe. Li, orei e cantei o mesmo salmo. Aproveitei e falei de como minha mãe gostava daquele texto e como Deus a havia levado para si em julho. 'A graça me sustentou. Somente a graça e fé em Deus pode nos consolar em momentos de perda como este', disse.

A senhora que, juntamente com o marido, viera chorar a perda do senhor du Marquê, me disse: 'Pastor talvez seja por isso que eu sofro tanto. Eu não creio em nada. Não tenho fé. Há 40 anos atras, eu e meu marido morávamos na Africa e minha querida mãe e um irmão, morreram num acidente de carro aqui na França. Na época não podíamos viajar com facilidade, então eu não pude vir para o enterro de minha mãe e de irmão. Até hoje eu sofro e fico pensando que meus queridos não morreram, mas continuam perdidos por ai...'

No momento da oração, quem mais chorou naquele quarto de hospital, não foi a senhora que acabara de perder seu marido, mas a outra que todos esses anos vive um luto que nunca tem fim. Uma esperança de vida, onde só existe morte e duvidas. Ao ver as lagrimas da senhora eu disse simplesmente: 'Seja abençoada minha senhora. Que a Paz de Deus seja com a senhora.' Ela olhou nos meus olhos, os dela cheios de lagrimas e disse: 'Obrigada pastor!'



Um por todos e todos por um.