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quinta-feira, 27 de setembro de 2012



A geleia de figo.





À caminho do Conservatório de Musica Maurice Ravel de Bayonne (o compositor nasceu aqui), liguei para um amigo. Meu amigo francês, pastor também, grande amigo de muitos carnavais. Daqueles que conheci fora da pátria amada. Carnaval europeu, claro. Naquela segunda feira, dia 17 de setembro, ia passar meu primeiro teste para conseguir uma vaga no disputado curso de canto de Madame Du Château de Bercaia. Partição do Messias de Händel debaixo do braço, liguei para o amigo. A voz rouca, do outro lado do telefone falava de cansaço, de tristeza, de lagrimas. As angustias tantas do ministério pastoral as vezes não poupam ninguém. Nem mesmo aquele rosto radiante de meu amigo francês, que a gente sempre pensa ver sorrindo. Ninguém é feito de ferro, nem mesmo pastor, nem crente algum. Somos todos de carne e osso, vasos de barro, que Deus escolheu para encher de sua Vida, tesouro eterno e glorioso.

O telefone na mão, caminhava pelas ruas agradáveis da cidade medieval, enquanto ouvia os lamentos de meu amigo. Os portões do Conservatório de Musica de Bayonne, casa da orquestra sinfônica da Costa Basca, apareciam do outro lado da avenida. Edifício histórico, com seu jardim interior, com sua capela, sua torre do relógio.. Antigo monastério, o lugar guarda aquele ar de coisa centenária, porem agradável e convidativo. O longo corredor com suas arcadas que dá para a porta principal do edifício parecia ainda mais longo naquele dia, quando ainda ecoava no meu ouvido os lamentos de meu amigo.

Madame du Château de Bercaia, uma grande cantora lirica, me recebeu com um grande sorriso. A senhora já foi sabendo que sou pastor e quis saber se somente cantava musica sacra, ou cantava profana também. 'Primeiro contra-tenor que recebo em minha classe.' E possivelmente o único pastor que aquela senhora que tem a minha idade jamais viu. Se contra-tenores são raros por aqui, pastores ainda mais. Consegui passar o primeiro teste e volto hoje para cantar mais uma do Messias; 'He was despised', baseado em Isaías 53.

Chegando em casa, vi a figueira repleta de frutos. A figueira no jardim da casa pastoral da igreja reformada de Bayonne, onde moramos. No norte fiz muita geleia de framboesa, groselha e ameixa, aqui no sul, os figos seriam minha próximas vitimas. Muito importante numa certa culinária do sul da França a geleia de figo nos encanta! Carnes com geleia de figo, patê de figado de ganso com geleia de figo e tantas outras delicias de deixar água na boca.

Os figos e o açúcar em breve não passariam de uma mistura escura e viscosa. A panela para fazer geleia eu herdei de uma avó de minha esposa, a colher de pau trouxe do Brasil. A musica barroca daquela manhã ainda ecoava nos meus ouvidos. O Pierre, pianista do classe de canto lirico, correndo com o Handel no seu piano longo, preto, com sonoridades que continuam vibrando mesmo quando a gente esta longe da sala. Enquanto mexia a galeia, pensava na musica inspirada em Malaquias 3 ecoando nos longos corredores do conservatório. Musica divina, inspirada, profética: 'But who may abide the day of his coming?' (Quem poderá suportar o dia de sua vinda?). A fuga do Handel avançava vigorosa num momento em que a orquestra parecia ter ficado louca. Os violinos choravam e o solista proclamava: 'Fogo que devora, que purifica...'. O compositor parece ver o Messias andando pelas ruas empoeiradas da Palestina trazendo à realidade do Reino Celeste para gente sentada no desespero, na angustia, à sombra da morte. O figos também sentiam o fogo, não tendo para onde fugir, frutas transformadas em geleia. Enquanto mexia a mistura eu pensava no que meu amigo me havia dito ao telefone naquela manhã.

'Voltando para casa na sexta-feira passada, meu coração quase parou Junior. Quanto sofrimento a gente ainda tem que enfrentar neste país? Terra árida, terra de desafios que as vezes parecem maiores do que a força que recebemos. Meu telefone tocou, quando voltava de uma conferencia para pastores no leste.. Recebi uma noticia ruim, muito mesmo que me deixou paralisado. Uma senhora da igreja....Cheia de vontade de conhecer a Vida Eterna, tínhamos grandes expectativas, iriamos batiza-la... Três filhos e um marido, alcoólatra...Junior, eu estou tão triste. A senhora for encontrada pela família pendurada, enforcada...na cozinha.. O que vou fazer Junior? A mulher se suicidou meu amigo! Que vou dizer a família? Eu pensei que aquela senhora estava às portas do Reino de Deus.'

'Que triste! Sinto muito.', eu disse, não sabendo muito o que dizer.



Um por todos e todos por um.


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